“O tempo das criadas”, publicado em 2012, é um livro sobre o trabalho servil em Portugal entre os anos 40 e 70.
A estreia da nossa rubrica literária “A borda lê” destacou esse estudo de Inês Brasão, o qual expõe uma interpretação crítica dos documentos sobre as empregadas domésticas durante o Estado Novo.
Depois da leitura, a jornalista Isabel Moita esteve à conversa com a autora, que é professora de Sociologia no Instituto Politécnico de Leiria e investigadora integrada no Instituto de História Contemporânea (NOVA FCSH).
Confere a entrevista a seguir, em que Inês Brasão partilha o seu processo de trabalho, as suas inspirações e as reflexões que a marcaram.
Aborda.pt: O que a levou a ter interesse no tema da condição servil em Portugal?
Inês Brasão: Cheguei a este tema em 2005, alguns anos depois de terminar o mestrado, quando me dediquei a compreender um pouco dos discursos que existiam sobre o corpo da mulher no período do Estado Novo. [Estudei] como o corpo feminino era lido em termos públicos, em termos da própria da Associação Portuguesa Feminina, do discurso religioso, da imprensa e tudo o que tinha que ver com descrições sobre como parecer uma mulher legitimamente aceite pelos outros.
Nesse encontro com os pontos documentais, percebi que a figura da “criada de servir” era usada como um contra modelo do que era uma mulher obediente. Isso fez-me algum caminho de questionamento, porque me parecia que havia alguma injustiça social nessa forma de olhar as trabalhadoras domésticas. Eu tinha a perceção de que esse trabalho era bastante comum e exigente e que muitas vezes a mulher perdia a sua capacidade de reagir, ou seja, estava muito entregue àquilo que era um projeto servidão e obediência sem muitas oportunidades de retaliação, negociação, etc.
Achei que existia uma grande lacuna em estudos [sobre a condição servil] no contexto português. No caso de Espanha, França e Inglaterra, por exemplo, esta questão já tinha sido muito trabalhada para explicar a evolução das sociedades, sobretudo depois do período da revolução industrial. Pensei que era interessante olhar para o nosso panorama, não através da imprensa ou dos discursos políticos, mas das memórias das próprias trabalhadoras, para perceber o conteúdo do seu trabalho – o que, no seu percurso de vida, levou àquela decisão; que memórias têm da forma como se integravam nas próprias famílias e conheciam a cidade; que relações que deixavam à parte na família de origem; como se relacionavam com outras trabalhadoras e com o seu próprio corpo e intimidade; e com que conflitos de natureza laboral se cruzavam.
Aborda.pt: O que a inspirou durante a investigação?
Inês Brasão: A literatura que já existia. O Jorge de Sena, por exemplo, é um dos poucos escritores que denuncia, de forma muito crua, que as empregadas domésticas serviam para iniciar as relações sexuais dos filhos dos patrões. Percebemos que há ali uma violência que não se questiona, que as próprias mães certificam, e que pouco se falava na natureza do trabalho. Temos toda uma linha de memória, seja literária, cinematográfica ou no teatro de revista, em que esta rapariga trabalhadora é sempre vista na sua sexualidade e não naquilo que ela entrega à família. Para mim, era importante que alguém [estudasse a questão] de uma forma rigorosa, histórica e antropológica, para tentar ver a raiz do problema e desenhar a oportunidade da pessoa que é o nosso objeto de estudo nos devolver a sua perceção do seu trabalho.
Eu sentia que era quase uma vergonha nacional assumir que estas mulheres foram nossas avós. Muitas vezes os filhos ou netos calam esta verdade como se fosse algo indigno, algo que estas mães ou avós devessem sentir vergonha. Então, não havendo uma história oral que pudesse reconstituir estas formas de trabalho, eu achei que havia uma oportunidade, dentro das ciências sociais, para desenvolver este caminho. Hoje em dia, felizmente, existem muitos trabalhos de investigadores que estão a passar esses conhecimentos. Sinto que é um tema que já começa a surgir como algo que nos interessa conhecer, para saber mais sobre o século XX português. Sinto-me feliz por este passo ter sido dado e pelo tema ter deixado de ser visto como vergonhoso. Talvez seja a natureza privada que perturba estas memórias. A realidade destas mulheres estava encasulada.
“A figura da “criada de servir” era usada como um contra modelo do que era uma mulher obediente.”
Aborda.pt: Sobre o termo “criadas”, que era usado na altura, o que acha que mudou de lá para cá? Ainda se usa este termo, ou agora é considerada uma expressão retrógrada?
Inês Brasão: Era importante para a investigação fazer este exercício de dicionário, no qual começamos por aprender mais sobre uma palavra e vamos mais a fundo no nosso estudo. Esta palavra, nas mais diferentes línguas, tinha e tem uma conotação altamente pejorativa e está ligada a uma ideia de alguém que tem uma obediência cega ou que se deixa subordinar sem a capacidade de agir, com pouca personalidade ou até sem a maioridade individual, então todos os caminhos da palavra nos levam a uma inferiorização mental, social e natural da pessoa. Depois, existe uma segunda linha de sentido, como se estivéssemos a dizer que uma pessoa foi criada por alguém – neste caso, a família que a recebeu – e que, portanto, vai crescer com essa família, que a vai ajudar a transformar-se de rapariga para mulher.
Hoje, quando queremos injuriar alguém, dizemos “eu não sou tua criada”. Na expressão da oralidade, continua uma palavra maldita para a sociedade, uma ofensa. Na escrita, foi substituída.
Aborda.pt: A Inês mencionou, numa entrevista à RTP, em 2012, que propôs confrontar as protagonistas com a construção social feita acerca das criadas na altura. Que conclusões tirou disso? As entrevistadas tinham noção dessa construção social?
Inês Brasão: Sim, tinham noção, pela maneira que os patrões as tratavam. Tinham a ideia de que o seu trabalho tinha poucas regras e que não existiam limites para aquilo que podia ser o volume do que lhes era pedido. Existia nelas uma confusão muito grande do que era a esfera pessoal e a esfera do trabalho. Falaram-me que a liberdade delas era inexistente, que cresciam sem ter noção do que era o mundo, que viviam cegas às transformações fora da casa dos patrões – elas só tinham as vivências que a família lhes dava.
Quando começavam a ter maior liberdade, por volta dos 18 ou 19 anos, experimentavam as primeiras formas de autonomia com uma sensação de perigo, porque era uma aprendizagem muito brusca. Elas decorreram, abruptamente, do campo para a cidade sem haver uma transição lenta do que era crescer numa cidade, mais evoluída que o campo, mesmo vivendo num país que era muito fechado nessa época.
Penso que elas tinham noção que eram tratadas de forma indigna, mas também via que, relativamente àquilo que era a sua vida no campo, havia alguma melhoria em termos de espaço pessoal – tinham uma cama quente, uma casa com outras condições e, apesar de tudo, algum acesso ao que era a cidade, o poder passear ao lado de um dos patrões, poder ir à mercearia, à padaria. Isto é algo que é tão simples, mas que para elas era importante e visto como um passo em frente nas suas histórias de infância, como se puderam fazer algo melhor do que esperavam.
“Era quase uma vergonha nacional assumir que estas mulheres foram nossas avós.”
Aborda.pt: Sobre o forte êxodo feminino na altura, no seu livro, diz que esse momento representa uma “projeção coletiva de algo mais que uma vida no limiar da sobrevivência”. Qual a importância deste movimento para a vida das mulheres?
Inês Brasão: Este era um tema que estava muito mal explorado. Eu, que sou apaixonada por este período, dos anos 30 aos anos 70, conhecia artigos que falavam dos anos 60 em Espanha, Alemanha e França, mas sobre Portugal não havia ou eram poucos. Havia uma penumbra sobre o facto de ser existido um forte êxodo feminino, enquanto também havia o êxodo masculino. Como elas chegavam à cidade e eram logo encasuladas no trabalho doméstico, retirou-se uma visibilidade social histórica desse fenómeno.
Esse movimento teve uma expressão quantitativa tão grande que, de facto, em algumas regiões, desapareceram de 20% a 25% de mulheres. Para as famílias destas mulheres, [o êxodo] era algo aspiracional, porque havia a ideia de que estas raparigas, integradas em famílias que, normalmente, tinham melhores recursos socioeconómicos, iriam, de um certo modo, absorver essas melhores condições. As mulheres pensavam que o casamento com alguém da cidade poderia, de alguma forma, livrá-las das condições que tinham no campo e aspiravam sempre ir mais longe nas suas vidas. Sair da casa dos patrões e ser independente foi um feito para muitas mulheres.
Imagem: The Maids, Paula Rego (1987)
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