Os sobreiros e oliveiras dos montes alentejanos fazem sombra no alcatrão da Estrada Nacional 2 enquanto as árvores, sabe-se lá de quantos anos, são também testemunha de um Portugal mergulhado numa ditadura fascista que se estendeu por longos 48 anos.
O caminho que Conceição Ramos fez, assim como muitas mulheres nas décadas de 50 e 60, foi mais longo e mais histórico a um nível cinematográfico do que o de quem passa por Abrantes nos dias que correm. “Cachopa desenrascada”, com 19 anos saiu de uma pequena aldeia de Trás-os-Montes e chegou à metrópole para servir senhores e madames. Sua história de bravura, luta e resiliência serviu de suporte e inspiração para as mulheres que depois se alinharam à fundadora do Sindicato do Trabalho Doméstico em prol de dignidade e direitos trabalhistas.
Hoje, é numa casa térrea à entrada da vila de Mora onde Conceição vive na companhia do marido, Olegário Paz.
Na sua sala de estar, a olhar o jardim, recorda o primeiro trabalho como “criada de servir” para a família de um Brigadeiro. Confrontos com a madame sobre como as camisas do Senhor deviam ser passadas a ferro levaram-na a despedir-se. Rapidamente viu-se em Carcavelos, a trabalhar para um casal idoso alemão, cuja idade aliviava-lhe a rotina: acordava antes dos patrões, preparava o pequeno-almoço, servia o almoço, de seguida os patrões preparavam-se para a sesta, acordavam com o chá das cinco, jantavam e deitavam-se cedo – serviço menos exigente que os anteriores, mas a solidão ainda persistia. “Graças a Deus que havia missa ao domingo”, lembra.
Basta passar cinco minutos com a Conceição para confirmar que é uma “rapariga sem papos na língua”, como ela própria se define. No ano de 1960, quando um crachá lhe despertou a atenção, não hesitou em abordar a mulher que o usava e disse: “olha lá, também quero um desses”. Assim, integrou na Juventude Operária Católica (JOC). Originada em 1923, na capital da Bélgica, a atividade jocista chega a Portugal em 1935. Recebida de braços abertos pelas dirigentes, Conceição encontrou o veículo para libertar a voz que nasceu com ela e não conseguia ser parada. Sorri ao relembrar que “abria a boca e todos se riam”. Começou a mobilizar empregadas domésticas e em qualquer lado conseguia angariar mais elementos para o movimento. Ao fim de dois anos, recebeu o crachá e, com ele ao peito, começou a sentir mais responsabilidade pelas raparigas que para ali levava.
Reparou que, mesmo dentro da JOC, as trabalhadoras domésticas eram deixadas para o fim da conversa. Primeiro falavam as empregadas de secretária, depois as operárias de fábricas e muitas vezes os seus discursos eram interrompidos por falta de tempo ou, em algumas reuniões, cortado de todo. Sentindo que os problemas do grupo eram empurrados para o fundo, Conceição escreveu ao movimento a pedir que se organizasse um encontro apenas de “criadas de servir”. Por considerar o termo pejorativo, opta, nesse momento, por referir a sua função como de “empregada doméstica”.
Uma vez que a solicitação foi acatada, as trabalhadoras então começam a ter um espaço e tempo exclusivo para expressar as indignações e injustiças da vida na casa dos patrões. A cada reunião, mais a ideia de um sindicato começava a pairar na sala, a qual assustava as dirigentes da JOC, que alertavam para o perigo de formar uma união sindicalista num clima fascista. A PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) ainda chegou a “perguntar” pela idealizadora – “queriam me assustar, mas não conseguiram”, afirma Conceição. Apesar das ameaças, o Sindicato do Trabalho Doméstico surgiu na clandestinidade.
A 24 de abril de 1974, alheias ao que aí vinha, as raparigas reuniram-se para criar um caderno reivindicativo. O dia seguinte amanheceu e Conceição acordou e preparou o pequeno-almoço do casal para quem trabalhava, como de costume. Ao recordar que ouvira naquele 25 de abril, no pequeno rádio que os patrões lhe ofereceram, a notícia dos capitães de abril a marchar por Lisboa, o seu sorriso chega-lhe aos olhos: “foi o dia mais feliz da minha vida”.
Logo após a Revolução dos Cravos, os senhores de Conceição deixam o país. Mas o clima de esperança que paira em Portugal traz um novo objetivo para ela e para as outras empregadas domésticas: regularizar o sindicato.
O processo de legalização foi marcado sobretudo pelos conflitos entre o Sindicato do Trabalho Doméstico e a Ordem de Santa Zita. As “zitas” formavam uma organização financiada pela entidade patronal que tinha como objetivo formar as “criadas de servir” para obedecer e serem submissas. Acusando as sindicalistas de comunismo, a Ordem de Santa Zita cria uma união oposta, intitulada Sindicato Livre das Empregadas Domésticas, que consegue ser regularizada primeiro, em 1975.
A dedicação de Conceição e de suas colegas não cessou até que o Sindicato do Trabalho Doméstico fosse igualmente reconhecido pelo Estado, em 1976.
Texto: Adriana Mendes
Ilustração: Carolina Llussá
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